domingo, 12 de abril de 2020

Sexta-Feira Santa/2020

Sexta-Feira Santa/2020
Homília de D. Manuel Felício, Bispo da Guarda

Hoje, Sexta-Feira Santa, paramos para comemorar a Paixão e a Morte de Jesus.
É feriado nacional e a circunstância do estado de emer­gên­cia, agravado nestes dias de Páscoa, mais condições nos cria para concentrarmos a nossa atenção no significado da Morte de Cristo. Isto apesar de, este ano, estarmos impe­di­dos de celebrar o acontecimento nas habituais assem­blei­as, quer dentro quer fora das Igrejas.
Cristo, de facto, morreu às mãos dos seus adversários, atraiçoado e abandonado pelos seus mais diretos colabora­dores. Mais ainda, podemos adiantar que a sua morte foi o pre­visível ponto de chegada de um processo que o acom­panhou praticamente toda a sua vida.
A novidade que Jesus trazia consigo para oferecer a todos os seres humanos encontrou pela frente a incapacidade dos seus contemporâneos para compreenderem esta mesma novidade e lhe abrirem as portas da suas vidas. Esse conflito instalou-se desde o início, agravou-se durante o tempo da sua vida pública, atingiu o máximo naquela festa da Páscoa, em Jerusalém, até se consumar na condenação á morte na cruz.
Este é o facto que sempre inquietou as pessoas e para o qual, ao longo da história, foi insistentemente procurada explica­ção.

Olhemos agora para a descrição que o Evangelho de S. João faz da Morte de Cristo e para as primeiras explicações que dela nos apresenta. A seguir, vamos compará-lo com as espe­tativas que existiam sobre a figura do Messias vindas desde há muitos séculos, para depois procurarmos identificar, o melhor possível, a luz que se desprende da Morte de Cristo para iluminar o sentido das nossas mortes.

O Evangelho de S. João, no relato da Paixão, começa pela trai­ção que desencadeou o processo final da Morte de Jesus.  Ju­das é o traidor que consegue os seus intentos, mas isso não tirou a Jesus a liberdade de se entregar a si mesmo, volunta­riamente e não obrigado. De facto, enquanto os soldados jaziam por terra, Jesus poderia ter fugido ou pelo menos os seus podiam ter atuado em sua defesa. Até a iniciativa de Pedro que puxa da espada é reprovada por Jesus, porque o que estava em causa era “beber o cálice que meu Pai me deu”.
Enquanto o amargo da traição se aprofunda ainda mais com a negação de Pedro, por três vezes, Jesus é levado de Anás para Caifaz e daqui para o Pretório de Pilatos. Este juiz iní­quo reconheceu publicamente e, por duas vezes, a inocência de Jesus, mas não teve coragem para colocar o direito e a jus­ti­ça à frente da defesa do seu lugar de governador, antes, deixou-se pressionar pela ameaça – “se o libertas não és ami­go de César”.
Decidida a condenação, segue-se o caminho doloroso para o cal­vário. No alto da Cruz, Jesus oferece a sua mãe a João como mãe dele e nossa mãe e já depois de ter expirado, do seu lado aberto fez nascer a Igreja e os sacramentos simboli­za­dos  no sangue e água que saíram em resultado da lança do soldado que o trespassou.

Com uma morte assim, Jesus, por um lado, cumpriu as espec­ta­tivas que existiam sobre a figura do Messias que havia de vir e, por outro, assumiu o estatuto de novo e único Sacer­dote, capaz de fazer a reconciliação do mundo consigo mes­mo e com o seu criador.
Com o sofrimento e  a morte, qual ovelha levada ao mata­dou­ro, como nos lembra hoje o Profeta Isaías, o Messias destruiu os nossos pecados e pagou por nós a dívida que lhes estava imputada. Derramando o seu sangue na cruz, Jesus cumpriu esta profecia e inaugurou o único sacrifício da Nova Aliança capaz de destruir todos os pecados do mundo, contrariamente aos muitos sacrifícios da Velha Aliança que não tinham capacidade de o fazer.

Continuando a olhar para a morte de Jesus, reconhecemos que, por um lado, ela é resultado de um processo que acom­panha toda a sua vida, mas é também luz nova que ilumina quem quiser compreender com mais profundidade essa mes­ma vida. Igualmente ilumina o mistério do nosso sofrimento e da nossa morte e ainda as muitas limitações que fazem parte da nossa vida. Na realidade, a morte de Jesus ajuda-nos a integrar no percurso da nossa vida tam­bém os sofrimentos e a morte, em vez de os considerarmos simplesmente como diminuição e  interrupção da vida.
Compreendemos que as pessoas fiquem assustados diante do sofrimento e das muitas limitações que diariamente experimentamos e que o susto aumente quando se trata de encarar o enigma da morte. A tentação é esquecê-los e viver como se eles não existissem. Mas isso cria formas de vida falsas e irresponsáveis, colocando as pessoas numa espécie de limbo alienante.

Apraz-nos citar, a este propósito, uma médica muito consi­de­rada, pelo seu trabalho com os doentes terminais. Refe­rindo-se às forma atuais de encarar o sofrimento e a morte, diz: “O problema é que caminhamos ao lado de pessoas que pensam que são eternas. Por causa dessa ilusão vivem as suas vidas de modo irresponsável, sem compromissos com o bem, o belo e o verdadeiro”. E explica-nos ainda que olhar para o fim da vida das pessoas apenas pelo ângulo da biologia é muito pobre, pois, como acrescenta, “a biologia é apenas o que nos dá oportunidade de experimentar o que o ser humano de facto é”. E a propósito, lembra que o sofri­mento humano de modo algum se resolve com a antecipação da morte, pois o que está em causa é a humanização de ambos, tanto do sofrimento como da morte do sujeito. E conclui o seu raciocínio, dizendo: “É só pela consciência da mor­te que nos apressamos a construir esse ser que deverí­amos ser”.

Voltando à Paixão e à Morte de Cristo, começa­mos a compre­ender melhor como nelas encontramos a ajuda necessária para humanizarmos cada vez mais o nosso sofri­mento e  a nossa morte, que tanto um como a outra realmente fazem parte da nossa vida. E teremos conseguido bem esta humani­zação para nós próprios e a possibilidade de ajudar outros no mesmo processo, quando descobrirmos em Cristo aquela sabedoria que faz com que a morte dê sentido à vida vivida e que a forma como organizamos o atual percurso da vida dá também sentido à morte que havemos de viver.

Particularmente neste tempo de crise em que a morte volta a fazer-se presente na esfera pública, sentimos a especial ur­gên­cia de acompanhar as pessoas nas horas de sofrimento e sobretudo no momento único da sua  morte. Esse acompa­nhamento pede-nos, primeiro que tudo, uma atitude de pro­xi­midade e empatia, para nos colocarmos no lugar do outro, sentindo o seu sofrimento e a sua dor. Assim, ajudaremos, mesmo sem palavras, mas apenas com a nossa presença, a que o outro viva o sofrimento e a morte como algo que faz sentido.

No dia em que comemoramos a Morte de Cristo, fazemos uma prece especial por todos os que, particularmente nestes dias, morrem na solidão, longe dos entes queridos, sem te­rem por perto quem os acompanhe e os ajude a dar sentido ao momento mais decisivo da sua própria vida.
A luz do Sepulcro deixado vazio pelo Senhor que de lá saiu vitorioso nos ajude a encontrar para nós e para outros o verdadeiros sentido do nosso viver e morrer.

10.4.2020

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